Crônica-viajante: retrato cotidiano de um “Mirante-Trapiche”

Anne Camilla Voss
10 min readOct 5, 2021

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Texto experimental produzido na disciplina de Laboratório de Jornalismo Online, do Centro Universitário Tiradentes.

“Será que o motorista de hoje é o gordinho de bigode cinza?”, pensava eu enquanto caminhava pesadamente em direção ao ponto de ônibus, subindo a Rua Manaus e deixando minha amada cama para trás às seis da manhã, e com uma mochila enorme nas costas que me puxava levemente para a esquerda. O desbalanceamento de cadernos, livros e uma quantidade definitivamente exagerada de canetas que eu levava nas costas fazia com que eu tropeçasse a cada cinco passos, sempre no pé direito. Eu parecia uma criança desmantelada tentando corrigir o passo e falhando miseravelmente, até que decidi simplesmente focar em chegar até o ponto de ônibus inteira e, depois que embarcasse, poderia descansar as pernas e tentar ajeitar o conteúdo da mochila.

Mamãe já tinha saído meia hora antes de mim e, à essa altura, com certeza já tinha pego o ônibus e estava na metade do caminho até o trabalho. Mais tarde, naquele mesmo dia, minha avó precisaria ir até o Farol para fazer alguns exames de rotina, e minha madrinha a levaria de ônibus, pegando exatamente o mesmo ônibus que mamãe pegara antes, talvez até com o mesmo motorista e cobrador, o que parecia incrivelmente divertido do meu ponto de vista. Eu já havia pego o ônibus tantas vezes com a mesma dupla de cobrador e motorista que quase me sentia amiga deles, pelo menos à ponto de me deixar confortável em dizer “bom dia!” com um sorriso para ambos e receber uma resposta favorável de ambos. Alguns cobradores até se ofereciam para segurar minha mochila enquanto eu atravessava a catraca, num gesto que quase fazia meus olhos marejarem.

Aquele calorzinho abafado de Maceió afeta todo mundo…

Uma vez no ponto, me encostei na parede da lojinha de sapatos que ficava exatamente na frente do ponto e tomei um grande gole d’água da minha garrafinha. Apesar do horário, o sol já estava firme e forte no céu, de tal forma que todos no ponto se abanavam ou davam a famigerada enxugadinha na testa com as costas da mão. Minha carteirinha de ônibus repousava no bolso traseiro da minha calça jeans (sempre no lado direito, porque sou um bicho de costumes), e eu me relembrava constantemente de checar quantos créditos ainda tinham na carteirinha, algo que minha madrinha me pedia há dias e eu sempre esquecia de fazer pois passava na catraca com muita pressa, procurando um lugar para sentar. Naquela manhã, eu pegaria o ônibus antes do normal, já que precisava chegar cedo na faculdade para devolver um livro na biblioteca e me preparar para uma prova. Como consequência, eu estava sonolenta e tentava descansar um olho enquanto o outro perscrutava cada ônibus que passava, à espera do meu.

“Porquê eu não podia ter nascido com pai rico, que tivesse carro? Podia dormir até no carro enquanto ele me levava pra aula… Mas eu não dei a sorte de ter nem pai, imagina pai com carro.”

“Será que eles deixam a gente trancado dentro do ônibus se a gente dormir nele e ele voltar pro estacionamento no fim do expediente? Acho que isso aconteceu com um cara no TikTok…”

“Eu sempre esqueço qual é o lado do sol no ônibus à essa hora… Vou ter que trocar de assento se pegar o lado do sol sem querer.”

“Queria ter aqueles fones bluetooth pra poder ouvir música no ônibus sem risco de ser assaltada… Podia esconder eles com o cabelo e aí o bandido não ia ver nada, nem fio, nem nada! É genial.”

Estranhamento, ansiedade, desespero, frustração e desistência: as cinco fases do atraso de ônibus

Enquanto isso, os ponteiros do relógio se apressavam em girar. Seis e quinze… Seis e meia… Seis e cinquenta… A princípio eu estava distraída com meus pensamentos, mas comecei a entrar em pânico notando o atraso do ônibus, o sono sendo substituído por uma crise de ansiedade que me deixou sem ar. Quando olhei ao redor, cerca de treze pessoas estavam aguardando no ponto, todas com a mesma expressão frustrada/indagativa. E, como um milagre concedido pelos céus, um pontinho amarelo surgiu na esquina.

“Por favor seja o Mirante-Trapiche, por favor seja o Mirante-Trapiche, por favor seja o Mirante-Trapiche…” comecei a recitar internamente, quase como uma reza, enquanto observava atentamente o pontinho amarelo assumir a forma de um ônibus amarelo e branco que subia a rua à toda velocidade e cujo leitor na frente dizia… MIRANTE-TRAPICHE!

Ergui o braço tão rápido que quase dei um tapa sem querer numa senhora que aguardava do meu lado. Várias outras pessoas fizeram o mesmo, e o ônibus desacelerou aos trancos até parar, enquanto nós nos engalfinhávamos para ver quem subiria primeiro… E essa pessoa fui eu, que desferi mochiladas amigáveis nos mais próximos e me esgueirei nos degraus da porta, dando o meu clássico bom-dia para o motorista e o cobrador, que eram a dupla gordinho de bigode cinza e mulher de cabelo preto num coque.

Na hora de garantir um lugar no ônibus não existe amizade, família, amor…

Como já era de se esperar, esqueci novamente de ver quantos créditos estavam disponíveis na carteirinha ao passar pela catraca.

Conforme sentei perto da saída, nas cadeiras altas e no lado esquerdo (evitando o sol, é claro), vi algumas caras feias me encarando, provavelmente desaprovando minhas mochiladas, e coloquei a mochila no colo. O atraso do ônibus me faria chegar na faculdade depois das sete e meia, e eu agora só podia contar com a piedade divina para que o professor me permitisse entrar na sala depois do começo da prova e que nenhum coleguinha extremamente inteligente ou apressado de turma decidisse terminá-la cedo. Fechei os olhos, fiz um pedido sincero à Deus que me desse uma mãozinha e que não embarcasse muita gente no ônibus hoje…

E é claro que entrou, sim, MUITA gente no ônibus naquela manhã. Paramos em todos os pontos de ônibus no caminho até a faculdade e eu quase chorei de nervoso. Eu olhava o relógio no pulso (jamais olharia a hora no celular e arriscaria dar sopa pra um bandido atento) de cinco em cinco minutos, esperando um milagre que fizesse o ônibus voar como um foguete e me deixar na porta da UNIT… Ou melhor, na porta do meu bloco, instantaneamente. E é claro que isso não aconteceu. O atraso do ônibus afetava muitas pessoas que dependiam inteiramente dele para chegar até seus destinos, como eu, quer eles fossem um emprego, uma faculdade, um consultório médico… Então era óbvio que muitas pessoas embarcariam no ônibus e ele lotaria rapidamente, o que fez com que a temperatura já alta subisse ainda mais e causou um efeito estufa que teria sido muito pior caso nós não conseguíssemos abrir cerca de 70% das janelas do ônibus (os 30% restantes estavam emperrados).

O compartilhamento de calor humano em Maceió de manhã é uma experiência transcendental

Ao observar o rosto das pessoas, notei que muitas delas traziam a mesma frustração que eu, o mesmo olhar rápido que voava para o relógio ou o celular para checar a hora e se tornava resignado. Os outros rostos eram impassíveis com misturas de cansaço, melancolia e total ausência de qualquer tipo de traço emotivo. Engoli seco. A maior parte daqueles rostos me eram familiares, de uma forma estranha, porque nós pegávamos o ônibus praticamente todos os dias no mesmo horário e eu acabava fazendo anotações mentais sobre essas pessoas e os comportamentos delas. Jamais trocara sequer duas palavras com nenhuma delas, mas a familiariedade fazia com que elas fossem quase como… vizinhos, ou algo assim?

Fui interrompida em meus pensamentos quando o ônibus parou no ponto da Praça Palmares e vi uma movimentação do motorista bigodudo, que desceu do assento e tropeçou nos degraus do ônibus. Na mesma hora virei a cabeça e observei pela janela para confirmar minhas suspeitas: um rapaz cadeirante estava esperando para embarcar no ônibus, o que arrancou suspiros e comentários negativos da maioria das pessoas no ônibus. Como o motorista precisava descer, subir pela porta do meio e ativar o mecanismo que permitiria ao rapaz embarcar com a cadeira de rodas, isso nos “atrasava” um pouco, e teríamos que abrir espaço no meio do ônibus para que ele passasse e pudesse se colocar no local designado, onde haviam cinco pessoas nesse exato momento agarradas às barras do ônibus que tentavam sem sucesso se enfiar no meio da muvuca e liberar espaço para o rapaz.

Tenho certeza que todos os passageiros do Mirante-Trapiche estavam se sentindo assim por dentro…

Era uma situação inquietante. Por um lado, estávamos todos atrasados, nervosos e suados enquanto esperávamos chegar aos nossos destinos e, por outro, não era culpa do rapaz cadeirante que o ônibus estivesse atrasado. Ele tinha tanto direito de embarcar naquele ônibus e ficar inquieto com o atraso quanto nós. Ele também necessitava do transporte público, tanto quanto qualquer um de nós e isso não o tornava culpado de qualquer atraso adicional. Os murmúrios ofendidos, que nunca passavam da categoria de murmúrios mesmo, cessaram assim que o rapaz subiu no ônibus e se encaixou de ré no espaço dedicado para cadeirantes. Ele agradeceu ao motorista em voz alta, com um sorriso cansado, e olhou ao redor, curioso, enquanto se abanava com uma mão e desgrudava a camiseta do corpo suado. Todos os murmúrios haviam cessado e as cabeças dos murmuradores agora encaravam o chão, talvez se lembrando de que nenhum deles sequer pensaram em dar “bom-dia” ou “obrigado” ao motorista e à cobradora.

Ele também estava cansado, com calor e atrasado, como qualquer outro dentro daquele coletivo. Ele precisava dele tanto quanto nós. A ideia de coletivo para o transporte público era justamente essa, nós éramos parte daquele coletivo, juntos, quer fosse no atraso ou no ônibus vazio dos fins de semana. Nós precisávamos dele, independente do destino de cada um.

E como já filosofava o pessoal do High School Musical: “ESTAMOS TODOS JUNTOS NESSA!”

Naquele momento, uma senhora se ofereceu para ajudar o rapaz a ajustar o cinto no corpo, que estava travando e prendendo na cadeira de rodas, e ele recusou gentilmente, com o mesmo sorriso no rosto. Ele tinha uma mochila pequena no colo, com um chaveiro do brasão do CSA pendurado. A senhora que ofereceu ajuda estava bem vestida, usava um perfume forte e tinha um crachá pendurado no peito. Nas cadeiras atrás deles, no lado oposto ao que eu estava, tinha uma moça com o uniforme de uma creche na Jatiúca que eu conhecia de vista, e ela digitava furiosamente no celular, os fones nos ouvidos.

Havia também uma mulher gorda e sorridente, os cabelos cacheados, que tinha uma menininha de uns sete ou oito anos no colo e segurava uma mochila da Elsa, de Frozen. Eu lembrei que aquela menininha, uma vez, tinha se sentado com aquela mulher atrás de mim e sussurrou: “mamãe, ela tem cabelo de princesa…” e eu, na época, tinha o cabelo longo e pintado de roxo berrante. Eu não consegui segurar a risada e me virei para trás, sorrindo e agradecendo. Ela ficou vermelha feito um tomate, e a mãe deu muitas risadas com isso. Notei que ela tinha crescido um pouco desde o acontecimento, e seu cabelo estava mais curto. Outra criança no ônibus chorava desesperadamente, sendo acalentada por uma mulher de aspecto cansado que conversava com um rapaz na casa dos vinte anos sobre “a emergência aceitar o plano de saúde da gente”. O ônibus estava cheio e eram tantos rostos, vozes, expressões, perfumes e sofrimentos…

Eu quando prestei atenção ao meu redor e notei a familiaridade da minha rotina…

O motorista de bigode cinzento era o senhor na casa dos cinquenta anos que gostava de ouvir rádio, especificamente a Gazeta na 94,1 FM, e que sempre cantarolava junto. O cobrador era uma mulher sem muita paciência que só abria um sorriso num momento específico: quando alguém dizia “bom-dia/boa-tarde/boa-noite” para ela. Nessa hora, seu rosto se iluminava e as ruguinhas pareciam dançar quando ela sorria. Porém, neste momento, ela encarava o celular de forma enfadonha, se remexendo na cadeira do cobrador, procurando uma posição confortável. E notei também que aquele veículo em particular, aquele Mirante-Trapiche no qual todos estávamos dentro, era um ônibus que nunca mostrava a hora correta no visor acima do motorista (por algum motivo ele estava três horas atrasado) e cujas janelas do lado esquerdo rangiam ao abrir. No lado direito, havia uma janela que nunca se fechava e se você fosse pego ali durante uma chuva forte, teria que mudar de lugar na hora. A porta de trás daquele ônibus era meio lenta; ela demorava para fechar depois que as pessoas desciam, o que era até bom de um certo ponto de vista porque pelo menos o risco de ficar preso nela era praticamente inexistente.

E enquanto eu observava tudo aquilo ao meu redor, tudo que eu via ao ir e vir de ônibus, notei que os rostos haviam mudado. Várias pessoas tinham descido do ônibus e subido, e nós estávamos passando na frente da Casa Vieira… e o próximo ponto era o meu! Como sempre, de forma totalmente atabalhoada, me levantei, coloquei a mochila no ombro, pedi licença, escorreguei no degrau ao descer do banco, puxei o cabo para dar sinal de descida e me postei em frente às portas de saída. Quando desci, olhei o relógio e dei um pequeno suspiro: sete e vinte. Eu estava dez minutos adiantada do que a previsão que eu havia feito mais cedo…

Mesmo numa situação merd*, ainda dá pra ficar feliz com uma pequena vitória!

Atravessei a rua às pressas, vendo pela visão periférica o Mirante-Trapiche seguir em frente. Fiz planos mentais de correr para a sala da prova primeiro e, quando terminasse, entregar o livro na biblioteca… E imaginei o quão engraçado seria, pelo menos para mim, se eu voltasse ao ponto de ônibus para pegar o Mirante-Trapiche de volta para casa depois de tudo isso e fosse o mesmo ônibus no qual eu havia vindo, com o motorista bigodudo, a cobradora de cabelos pretos e o visor acima do motorista que nunca mostrava a hora correta.

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Anne Camilla Voss

Graduanda em Jornalismo, focada em Jornalismo de Games, um pouco de cultura pop japonesa e traduções ENG-PTBR. Portfolio e contato abaixo: