Crônica — Feroz como um pinscher

Anne Camilla Voss
5 min readMar 26, 2021

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Às vezes a gente precisa ser bravo, feroz, até raivoso feito aqueles cachorros pinscher com tremedeira que mordem até o próprio dono se deixar e latem desesperadamente pra qualquer indigente que passe pelo portão de casa. Tem que cuspir o veneno na hora que querem forçá-lo pra gente beber; não levar o desaforo pra casa, à qualquer custo. Porque a gente já engole tanta coisa no trabalho, na faculdade, no aperto do ônibus cheio…

Fui de uma ferocidade digna de um pinscher com insônia e com o olho tremendo de tanto estresse naquela manhã de sábado, quando decidi entrar num grupo de K-Pop para dançar “profissionalmente”. Eu sempre gostei de dançar e adorava frequentar os eventos de anime de Maceió, desde o finado Nipponseito até o mais recente Animaceió, onde eu podia encontrar uma sala com vários Xbox One ligados à televisões que exibiam o logo do “Just Dance”, o jogo de dança mais famoso da época. Eu ficava horas ali, dançando com a minha melhor amiga ou sozinho quando ela parava para tirar fotos ou fazer um lanche. Discutíamos as coreografias das músicas, as músicas que mais queríamos ver e as que mais detestávamos… E assim, numa dessas excursões, conheci o Matheus, criador de um grupo de K-Pop que, segundo ele, “havia amado meu rebolado e me queria no grupo dele”.

Eu nunca tinha dançado músicas de K-Pop. Quer dizer, eu mal conhecia o negócio além de saber que eram bandas da Coréia do Sul que faziam música chiclete com clipes caríssimos e que tinham uma legião louca de fãs. Porém, eu não tinha nada a perder e, sendo bem sincero, fiquei tão sem jeito com o elogio que as palavras fugiram. Eu fiz que sim com a cabeça e ele vibrou de alegria, pedindo meu celular para colocar seu número nos contatos e me dar instruções.

Naquele sábado, algumas semanas depois desse primeiro encontro constrangedor, eu estava indo para a minha primeira reunião com o grupo, para conhecer os outros participantes e Deus sabe mais o que eu devia fazer ali. Peguei o Pontal-Iguatemi às 8 da manhã, vazio graças ao milagre do fim de semana, com os fones de ouvido pendurados no pescoço repetindo uma certa música chiclete do grupinho mais famoso de K-Pop da época, e desci num clima ensolarado na Sandoval Arroxelas. De tênis, short de academia e uma regata preta, enfiei o celular no bolso e corri para atravessar a rua e entrar em um dos prédios chiques que tinham aos montes por ali.

“Eu vim ver o Matheus, apartamento 107”, falei para o moço da portaria quando ele espremeu os olhos ao ver eu me aproximando. Ele saiu do meu campo de visão por um momento e depois retornou, os olhos quase fechados de sono, resmungando “pode subir, pode subir” enquanto o portão abria automaticamente. Escorreguei para dentro, procurando o elevador e subindo rapidamente.

No apartamento de Matheus haviam outras sete pessoas, todos conversando alegremente entre dentadas de pão com manteiga e goles de café. Sem jeito, me apresentei à eles enquanto Matheus se gabava do meu rebolado e dizia que eu seria uma grande aquisição ao grupo. Depois de recusar educadamente o café oferecido por ele, sentei num canto e aguardei que eles terminassem, depois de uns 40 minutos. Assim, começaram a discutir sobre as bandas e músicas, quais coreografias poderiam treinar para o próximo evento, quem participaria… E me elegeram para fazer parte, sem ao menos me ver dançar. Fiquei roxo de vergonha e comecei a gaguejar antes que Matheus dissesse: “vê os meninos dançando e me diz se você acha que dá conta”.

O notebook ligado, a página do YouTube aberta no navegador exibindo DOPE, do BTS, com vários rapazes fazendo uma coreografia que era imitada pelos nossos membros do grupo de dança. Eu assisti maravilhado e, com um nó na garganta, percebi que conseguiria fazer aquilo. No palco, na frente de todos? Aí era outra história. Mas ali, eu conseguiria. Levantei correndo e me coloquei no fundo da formação deles, repetindo os movimentos e sorrindo. Eles bateram palmas e gritaram, Matheus fazendo coro e gritando “ISSO AÍ, ISSO AÍ!”. E eu aceitei, com um sorriso. Eu me senti bem. Eu gargalhei.
Mas a gargalhada não durou muito.
Ao descermos pelo elevador, todos juntos, após o fim do “treino”, conversamos sobre as bandas e as músicas. Era uma conversa alta, feliz, ensolarada com os raios de sol que entravam no saguão do prédio. Todos usávamos roupas semelhantes e, logo, conseguimos notar um olhar de julgamento de alguns rapazes que aguardavam entre o saguão e o portão de saída, cerca de três ou quatro vestidos de um jeito bem… rico. Eles murmuraram entre si, lançando olhares de esguelha e torcendo o nariz até que ouvi, quando estava à poucos passos do portão, a frase “só um bando de bichinha barulhenta”.

Congelei. Os outros ao meu redor pareceram chateados, até apressaram o passo para sair logo do prédio, mas eu não consegui. Num acesso de fúria, engasgado com o amargor de ter minha felicidade ridicularizada por gente babaca que nem me conhecia, dei meia-volta à passos largos e dei um soco no rosto do rapaz mais próximo. Ele caiu no chão no mesmo momento, arrastando-se para longe de mim, e seus amigos o acolheram, afastando-se também. Ele tinha um olhar atônito no rosto, as mãos segurando a bochecha onde minha mão atingira, chocado. Antes que ele pudesse falar algo, me ameaçar ou até devolver o ataque, eu simplesmente dei as costas e saí do prédio, acompanhado pelos outros, que esperaram até chegarmos a uns quatro quarteirões de distância, me arrastaram pra dentro de uma panificação e gritaram entusiasmados com meu “ato heróico”, nas palavras deles, por vários minutos. Me pagaram uma coxinha com Coca pela minha ousadia e disseram que eu era perfeito para estar no grupo, bravo e feroz como eu era.

Sentado na mesa da panificação, com a coxinha em uma mão e a latinha de Coca na outra, eu chorei baixinho, abafando o soluço. Às vezes a gente precisa ser bravo, feroz, até raivoso feito aqueles cachorros pinscher com tremedeira. Naquele dia, eu fui. Mas a gente tem que ser feroz durante a vida inteira, e isso cansa. Às vezes, o soco é devolvido na mesma intensidade. Às vezes a gente não consegue se defender.

Dei um gole na Coca, sentindo a garganta arder com o gás e as lágrimas.

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Anne Camilla Voss

Graduanda em Jornalismo, focada em Jornalismo de Games, um pouco de cultura pop japonesa e traduções ENG-PTBR. Portfolio e contato abaixo: