Crônica — Mesmo quando chove, o calor nunca vai embora

Anne Camilla Voss
6 min readMay 28, 2021

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Crianças são um porre. E às vezes acontece de chegarmos nessa conclusão quando ainda somos crianças, pois a convivência com nossos semelhantes faz com que os fatos se tornem mais óbvios. Crianças, em boa parte, são malvadas, debochadas, egoístas e imunes ao espírito da empatia que tanto é semeado nelas para que se tornem bons adultos. É claro que generalizar com “todas as crianças são um porre” é ridículo; sempre vai haver a exceção à regra. Mas só de me lembrar da minha infância eu me tremo toda.

Quando eu tinha cinco anos, as crianças da minha creche costumavam roubar o meu lanche. Na Páscoa, eu ganhei um ovo temático da Disney do meu pai, que vinha com um pequeno brinquedo do Mickey Mouse dentro de um carrinho. Na segunda-feira após a Páscoa, decidi levá-lo para a escola. No mesmo dia, roubaram ele de mim. Na mesma semana, minha madrinha fez um escândalo na sala da diretora, chamou as crianças de “pestinhas ladrões” e me tirou daquele lugar. Ela comprou um refrigerante para comemorar. Eu me lembro de ter chorado de alívio.

Quando eu tinha sete anos, descobriram que uma das meninas da minha turma da primeira série tinha piolhos. Depois disso, ela virou uma pária dentro da escola e, meses depois do “incidente”, ainda era chamada de “Camila dos Piolhos” e todos se recusavam a sentar perto dela. Ela saiu do colégio antes de completar o ano letivo.

Quando eu tinha oito anos, costumava tirar boas notas na escola e ser elogiada pela professora responsável pela minha turma. Isso causava revolta nos meus quatro colegas de turma, que me excluíam das brincadeiras no recreio, cochichavam pelas minhas costas e riam alto, sempre desviando o rosto quando eu olhava. Foi nessa época que ganhei meus primeiros apelidos e comecei a detestar meu nome. Eu nunca me senti tão só.

Quando eu tinha onze anos, minha mãe morreu. Alguém espalhou para a turma durante a semana em que fiquei ausente pelo choque e, quando voltei, todos me tratavam diferente. Alguns pareciam agradáveis demais. Mas a maioria passou a me evitar e cochichar pelas minhas costas. Fui chamada para a sala dos professores diversas vezes, para conversar sobre o ocorrido numa espécie de terapia, para que eles se certificassem de que eu não estava com nenhum “pensamento errado”, se é que você me entende. Isso incomodou meus colegas, que passaram a achar que eu me tornara queridinha dos professores “só porque a mãe dela morreu”, como escutei nos corredores uma vez.

Durante essas visitas à sala dos professores, conheci uma garota chamada Suzana, que constantemente era chamada também, e por motivos semelhantes. Eu sabia seu nome porque eles a chamavam sempre antes de mim, e nós esperávamos na mesma recepção, separadas apenas por três passos. Ela geralmente ficava afundada no sofá, o pescoço encolhido, o rosto pálido e os traços orientais tão óbvios quanto a luz do dia. Seu cabelo era preto e brilhante, liso e macio, e eu a achava muito bonita. Porém, tímida como eu era, e deprimida pela perda da minha mãe, levei algumas semanas até conseguir puxar assunto com ela. Numa terça-feira nublada, quando o calor de Maceió tornava a sala insuportavelmente abafada, estávamos aguardando como de costume, e notei que ela usava um laço vermelho no cabelo.

Pigarreei de leve. Ela deu um pulinho quase imperceptível com o som.
Pigarreei mais alto. Ela ergueu um pouco o rosto para mim.

- Seu laço é muito bonito — falei, sorrindo um pouco.
- O-obrigado… — ela agradeceu, ficando tão vermelha quanto o laço. — Seus brincos são muito fofos.
Eu usava um par de brincos de ouro em forma de coração. O último presente que minha mãe me dera.
Engoli em seco. Forcei um sorriso novamente e falei:
- Obrigada. Foi minha m… — minha voz morreu, sem conseguir completar o resto.
Ela balançou a cabeça, de um jeito gentil, e sussurrou:
- Sua mãe, né? Desculpe por puxar esse assunto. Eu sei que é complicado.
Olhei para ela, surpresa.
- Como assim você sabe?
Ela arregalou os olhos, cobrindo a mão com a boca e depois baixando-a lentamente.
- Você não sabe? Todo mundo soube que uma menina da quinta série C perdeu a mãe há algumas semanas. O pessoal da sua turma é meio…
- Fofoqueiro? — perguntei, revirando os olhos.
- Basicamente, sim — ela respondeu, relaxando quando viu que eu não parecia estar chateada. — Eles espalharam pra todo mundo. Então… Desculpe. Eu nem me apresentei direito, meu nome é Suzana.
- Meu nome é Anne — respondi, fazendo um pequeno aceno. — Não se preocupa com isso não. As pessoas são malvadas, eu já me acostumei. Mas, se você sabe porquê eu tô aqui… Posso saber porquê você tá aqui também? Sua mãe também… — não terminei a frase, receosa.
- Não, não — ela balançou a cabeça com força, o cabelo chicoteando o ar com o movimento. — Eu… Acho que é bullying que chama. Os outros ficam me zoando… Por causa do meu rosto. Eu sou diferente, né? Mamãe diz que nós somos descendentes de coreanos. Aí não tem ninguém aqui como eu… E eles ficam me mandando “abrir o olho”, me chamam de “amarela” e… outras… coisas.
A voz dela embargou. Eu abaixei a cabeça, querendo dar privacidade até que ela se recompusesse. Depois de alguns minutos, falei baixinho:
- Eles são uns babacas. E daí que você é diferente? Você foi a pessoa mais gentil comigo nessa escola inteira.
O rosto dela se iluminou um pouco, mas, antes que falasse algo, a porta da sala dos professores se abriu e seu nome foi chamado. Ela se levantou devagar, pegando a mochila, e me deu um sorriso tímido. Fiz o melhor para sorrir de volta e observei-a enquanto sumia dentro da sala.

Por alguns meses, essa rotina seguiu quase sem mudanças. Depois desse contato, passei a conversar com Suzana sempre que estava na sala da recepção. Falei sobre minha família, o bobó de camarão incrível que minha madrinha fazia e os desenhos que eu assistia na TV. Ela me contou sobre sua família e sobre os costumes, as histórias que eram contadas para ela sobre sua descendência coreana e a culinária que sua família tentava fazer mas tinha dificuldade pela ausência de produtos orientais nos supermercados em Maceió. Era divertido conversar assim e fazia bem para nós duas; até os professores notavam isso. Mas o rosto dela continuava pálido, e olheiras surgiram em seu rosto. Percebi que sua situação fora daquela recepção não estava melhorando, e quando comecei a me indagar se poderia ajudá-la mais, descobri que ela estava indo embora.

Naquele dia, na sala da recepção, ela chorava baixinho, agarrada à mochila, quando cheguei. Preocupada, perguntei o que havia acontecido, e ela contou que ia se mudar. Seus pais tinham decidido sair de Alagoas, do Nordeste, e ir para outro estado, e eu nunca soube se eles haviam feito aquilo para protegê-la ou por outros motivos. Adultos eram um mistério.

Ela estava assustada com a mudança. Ela estava exausta do bullying. Ela não queria parar de me ver. Ela contou tudo isso aos tropeços, enquanto esperava a porta da sala dos professores se abrir. Mas, antes disso, a porta da recepção abriu repentinamente e uma lufada de vento entrou na sala, me fazendo tremer. Tinha começado a chover lá fora, e duas pessoas paradas na porta estavam deixando o frio entrar. Eram os pais de Suzana.

Ela olhou para eles e para a chuva, chocada, e então olhou para mim. Me abraçou com força e rápido, e comecei a chorar. Ela olhou para mim, e seus olhos se voltaram para a porta, onde a chuva fustigava com força. Olhou para mim de novo, com um certo brilho no olhar entre as lágrimas secas e disse:

- Anne, não se preocupe. Olhe, mamãe sempre diz que, se você se muda quando chove, isso significa que você terá uma boa vida dali em diante. É coisa de coreanos. Olhe, está chovendo. Vai dar tudo certo pra mim.

Eu balbuciei um pedido de desculpas, dizendo que não a esqueceria nunca. Eu podia ter pedido o número dos pais dela para mantermos contato. Era 2005, a única forma de contato para crianças como nós era o telefone. Mas fiquei plantada no chão, mal conseguindo me despedir, vendo ela sair pela porta para dentro da chuva e sumir na distância com seus pais. Suas palavras ecoavam na minha cabeça, e eu nunca esqueci aquele ditado coreano. Era como tentar encontrar esperança mesmo quando algo melancólico e frio acontecia. Um pouco de otimismo no meio da chuva congelante. E a sala da recepção nunca pareceu tão abafada quanto naquele momento, mesmo com a chuva entrando pela porta… Em Maceió, mesmo quando chove, o calor nunca vai embora.

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Anne Camilla Voss

Graduanda em Jornalismo, focada em Jornalismo de Games, um pouco de cultura pop japonesa e traduções ENG-PTBR. Portfolio e contato abaixo: