Crônica — O medo que a gente engole para não dançar na pista

Anne Camilla Voss
5 min readMay 28, 2021

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Eu tinha um medo danado de entrar na Federal. No finalzinho do Ensino Médio, meus professores começaram a fazer escândalos e ameaças para aqueles de nós que sequer considerassem entrar numa faculdade privada, recitando maldades como “A pessoa que tiver um diploma da Federal vai ter vantagem numa disputa por vaga de emprego, sabem porquê? PORQUE ELA SOFREU MAIS!

Não é de se admirar o medo que a maioria de nós criou de ter que ingressar numa faculdade privada, como o CESMAC ou a Nassau, nessa cidade minúscula, já que aquilo tinha “menos valor” segundo nosso corpo docente. Isso, somado à pressão de terminar o terceiro ano, não repetir de ano, estudar para o tal do ENEM, conseguir uma boa nota, passa para o SISU e rezar para conseguir entrar de primeira e não na famigerada LISTA DE ESPERA, onde nós tínhamos que torcer pela desgraça alheia para que os candidatos escolhidos tivessem algum problema e abrissem mão da vaga, a qual teria dezenas ou centenas de estudantes de espera se engalfinhando por suas migalhas…

Era o suficiente para pirar a cabeça do pivete ou da piveta com dezessete, dezoito anos que não sabia nada da vida mas acreditava que conseguir ou não uma vaga definiria seu valor como ser humano. Sabe, aqueles traumas do início da vida adulta que são a cerejinha do bolo para criar pessoas neuróticas, com baixa auto-estima e que buscarão preencher o vazio interno com delírios e vícios mundanos. Por mais que a gente negue, vire o rosto e finja que não vê, eles estão todos lá… E nem sempre vão embora. Mas a gente cresce e aprende a criar assim, lado a lado, sabe, que nem um cachorro ou gato doméstico.

Além de tudo isso, meu irmão, de forma totalmente não requisitada, insistiu que boa parte dos blocos da UFAL tinha nuvens flutuantes de maconha acima dos telhados, de tanta gente que fumava ali. Minha madrinha, entrando em pânico com a possibilidade de eu chegar à pelo menos 15 metros de distância de maconha, fez um escândalo tão absurdo que eu acabei desistindo da Federal e me aventurando, finalmente, por uma faculdade privada… Que me rendeu gastos absurdos, lanches ruins, um rolo com um rapaz de olhos verdes levemente desequilibrado e a minha primeira crise nervosa, chorando no banheiro do bloco com a pressão dos professores e a minha incapacidade de ter qualquer sucesso naquele lugar.

A parte boa? Aprendi a andar de ônibus sozinha na marra, com uma pasta cheia de materiais de desenho e um cano preto enorme pendurado no ombro cheio de papel manteiga (não, não aquele que a gente usa pra cozinhar, o que a gente usa pra DESENHAR). A parte ruim? Desenvolvi uma dor nas costas absurda que me deixou meio torta até hoje, sete anos depois.

Depois dessa aventura, pude concluir com total certeza que aquela faculdade privada não era pra mim. Depois de algumas sessões de terapia e uma conversa razoavelmente civilizada com minha família, decidi que enfrentaria as tais nuvens tóxicas de maconha da UFAL e tentaria ingressar lá de novo, com uma máscara de gás dentro da mochila, claro. Então lá fui eu de novo prestar o ENEM, só contando com a Mão Divina do Senhor Jesus sobre a minha cabeça guiando as respostas, uma sacola de barras de chocolate derretidas, uma garrafa de água e um par de botas de salto alto que fizeram milagres pela minha autoimagem. Depois, veio o SISU, o processo de escolha e lá fui eu cursar aquela que foi a minha segunda matéria favorita do Ensino Médio: Biologia.

Passei o dia inteiro fazendo trabalho com as amigas e peguei busão lotado no fim da tarde, comi no RU, dormi na biblioteca, provei a torta de chocolate do bloco de Matemática, comi a lasanha do bloco de Química, usei os banheiros que quase nunca tinham papel higiênico disponível, corri atrás de ônibus, fiz amizade com motorista até que a situação começou a ficar meio esquisita porque ele decidiu me secar com os olhos, me chamar de “princesa” e sorrir de um jeito estranho… Tive que começar a pegar outro ônibus pra tentar fugir desse potencial assediador e de vários outros que cruzaram o meu caminho naquela imensidão florestal da UFAL que ainda “era colada com o presídio”, como se eu precisasse de mais medos para superar… E tive que encarar a maldita passarela da UFAL.

Eu tinha duas opções: pegar um ônibus dentro da UFAL para voltar pra casa (eram duas opções de ônibus dentro, mas depois do motorista assediador tive que abrir mão de uma delas pela minha segurança), porém descer num ponto de ônibus mais distante que me faria ter que andar no sol das 12 horas e chegar em casa empapada de suor… Ou atravessar a passarela da UFAL, a única forma de atravessar aquela avenida de mão dupla de forma segura contra atropelamentos, porém correndo o risco de trombar com um bandido exigindo pedágio lá em cima e ter meus pertences abduzidos. Eu podia ignorar a passarela e correr na pista, esperando o sinal fechar para o risco ser menor, mas quando a tua mãe morre de atropelamento na tua infância, digamos que você fica meio traumatizado pra arriscar dançar na pista assim. Porém, se eu pegasse o ônibus do lado de fora, quer atravessasse a passarela ou dançasse na pista, podia descer num ponto de ônibus praticamente na frente da minha casa!

Era essa dúvida cruel que velava os meus retornos para casa. Numa tarde de setembro, perto das cinco horas, junto com Lizandra e a Josi, minhas amigas/colegas de curso/degustadoras das maravilhas alimentícias da UFAL, eu levava o violão nas costas (que eu tinha levado para uma apresentação de trabalho de Biologia Marinha, acredite se quiser) enquanto nós caminhávamos até o portão da UFAL. Olhamos para trás, e nenhum ônibus parecia fazer o retorno para sair de lá. Nos entreolhamos, respiramos fundo (a pobre Lizandra ainda lutava com uma cólica feroz que a fazia gemer de 15 em 15 segundos) e começamos a caminhar para a passarela. Eu sabia que, se alguém tentasse roubar meu violão, as duas correriam na velocidade da luz e me deixariam para trás, uma clara prova do desejo de sobrevivência humano.

Eu, inclusive, faria a mesma coisa.

Estava fora de questão dançar na pista com um violão nas costas e prestes à anoitecer. Subimos a passarela, eu com olhos tão arregalados do maldito medo que eles mais pareciam pires, a mão segurando a alça do violão com tanta força que ficava dormente. As pernas bambas, os pés suando dentro das meias dentro do tênis lá embaixo, Lizandra gemendo de cólica, Josi matraqueando sobre o que ia fazer para jantar quando chegasse na república porque ela estava DEVASTADA DE FOME mesmo que tivesse feito um lanche há meia hora…

Quando pisamos do outro lado da passarela, eu quase chorei de alívio. Sabia que ainda teria que encarar um ônibus lotado de gente com uma mochila que pesava meia tonelada, os pés suados de medo e um violão nas costas. Mas se eu tinha sobrevivido aquela passarela às cinco da tarde, engolindo o medo que serviu quase como combustível para me manter colocando um pé depois do outro até o final, eu conseguiria chegar em casa inteira.

Só teria que treinar a minha melhor cara de exausta possível, agarrada à uma mochila e um violão, para tentar convencer alguém que estivesse sentado no ônibus a se sentir mal por mim e me ceder seu lugar (ou pelo menos segurar minhas coisas, né, ser um ser humano minimamente decente). Além disso, torcer para que não houvesse nenhuma grávida ou idoso no mesmo ônibus para disputar a pena dos viajantes sentados…

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Anne Camilla Voss

Graduanda em Jornalismo, focada em Jornalismo de Games, um pouco de cultura pop japonesa e traduções ENG-PTBR. Portfolio e contato abaixo: